Sobrevivendo no Annapurna
Jean-Christophe Lafaille como escalador esportivo encadenou 8c (XIa) e realizou o primeiro 8a+ (Xa) em solo. Como alpinista, escalou em solitário, na vertente italiana do Mont Blanc, a via Divine Providence (900m, 6b A3) e conquistou Chemin des Étoiles (1.000m, 6b A3), nas Grandes Jorasses.
Lafaille conquistou também o primeiro A5 nas paredes dos Alpes (1.000m, A5 M7 V+) e tem experiência em vias de cascatas de gelo e de dry tooling. No Himalaia, já fez sete cumes acima dos 8.000m. Mas, foi no Annapurna (8.091m) que viveu a situação mais complicada em toda sua trajetória de alpinista.
Em outubro de 1992, Laffaille e seu compatriota Pierre Beghin tentaram conquistar uma nova via na impressionante face sul do Annapurna. Depois de três dias de pura escalada, escureceu quando estavam a 7.300m, enquanto buscavam um platô que viram em fotos. Mas, em seu lugar encontraram uma placa de gelo denso e escuro com 70 graus de inclinação. Não puderam cavar um platô para montar a barraca e tiveram que bivacar pendurados pelos baudriers. Incapazes de acender o fogareiro por culpa do vento, passaram uma noite longa e amarga.
Na manhã seguinte, continuaram a escalada e, quando faltavam apenas 150 metros para alcançar um trecho fácil, uma nevasca impediu que seguissem avançando. Esgotados e ligeiramente fora de controle, foram obrigados a descer, arriscando muito em cada rapel. Em um determinado momento, Beghin quis rapelar em apenas um grampo de gelo, mas Lafaille insistiu em usar um de seus piolets(*1) como backup.
Dois rapéis abaixo, Beghin fez uma ancoragem que permitiria alcançar terreno menos vertical e guardou com ele o resto do equipamento. Como era complicado levar ainda os dois piolets, de mau humor, passou um deles a Lafaille, que estava mais abaixo em um platô. A fadiga, a confusão causada pela tormenta e a urgência em descer nublaram temporariamente seus anos de experiência. Exausto, Beghin jogou-se para trás sobre uma só peça e sem proteções de reforço. A peça saiu e ele sofreu uma queda fatal de 1.500 metros, levando com ele as duas cordas e todo o material.
Atônito, Lafaille olhou para baixo com a certeza de que Pierre poderia parar: “Apesar de haver muita verticalidade, achava que acabaria parando”, conta Lafaille. “Nunca esquecerei que foi o que pensei naquele momento”. Sozinho em uma das maiores paredes de montanha do mundo, ele se viu com nada mais do que uma mochila quase vazia, a roupa do corpo, um par de piolets, dois mosquetões e uma fita. Além disso, a tempestade piorava. Do ponto de vista de um espectador disciplinado, Lafaille não tinha nenhuma possibilidade de sair com vida. Certo de que sair por cima era impossível, ele desescalou por terreno misto(*2) relativamente difícil até seu último bivaque, onde estavam os 20 metros de corda que haviam deixado a 7.000 metros. Ali, sem comida e com pouco gás no fogareiro para derreter neve e obter água, passou 48 horas encurralado, enquanto a tormenta soprava com força.
Lafaille aproveitou os breves intervalos da tempestade para descer em curtos rapéis, usando os 20 metros de corda e toda ancoragem possível, como os espeques da barraca, cravados de dois em dois. “A soma de tudo que havia feito durante os últimos dez anos – principalmente a escalada em solitário – me tirou dessa situação. Apesar disso, tive problemas a 7.000 metros porque estava assutado, tinha medo de cair”, lembra.
As fixações de seus crampons(*3) tinham se afrouxado, pouco a pouco, mas ele estava demasiado cansado para se ocupar delas. Um dos crampons saiu e desapareceu parede abaixo. Lafaille, continuo baixando, dando saltos com a única bota com crampon que lhe restava. Milagrosamente, 150m mais abaixo conseguiu recuperar o crampon perdido, num trecho de neve fofa. A 6.600m, alcançou um trecho de 150m de cordas fixas, deixado para facilitar a descida. Somente 100m abaixo das cordas é que havia um depósito de comida e combustível. Antes de alcançá-lo, uma queda de pedras o atingiu em cheio, quebrando o seu antebraço direito, que imediatamente começou a inchar e não parou até que a manga da jaqueta impediu. “Meu moral era alto quando me dirigia para a corda fixa, porque sabia que iria sobreviver. Dez minutos depois estava mais deprimido do que nunca. Pensei que não conseguiria sair da parede…”, recorda.
Bivacando a 6.500m, Lafaille chegou a pensar em rolar montanha abaixo dentro do saco de dormir para acabar de vez com aquele suplício. Mas, o instinto de sobrevivência prevaleceu. “Ainda me restava um pouco e pensei que o mínimo que poderia fazer era dar tudo”. Aos 6.500m, rapelou 200m e logo deixou as cordas, porque tinha que puxá-las com muita força para fazer usando apenas um braço e a boca. Desceu um trecho de gelo de 55 graus com um único piolet. A corda que haviam deixado para passar a rimaia(*4) estava congelada e, por mais que fosse puxada, golpeada ou mordida, não se afrouxava. Este episódio custou a Lafaille um dente quebrado.
Na manhã depois do acidente, seu oitavo dia na parede, Lafaille desescalou a rimaia. Protegido de quedas de pedras pela borda negativa da rimaia e não longe do campo base, ele relaxou. Tirou o capacete, deixou a mochila de lado e ficou tombado meia hora, dizendo “Nunca mais voltarei às montanhas em toda a minha vida”. Antes do acidente, ele e Pierre percorriam facilmente o caminho da rimaia ao campo base em apenas 30 minutos. Mas, agora havia meio metro de neve. A barraca que haviam deixado no campo base avançado estava enterrada e rígida pelo gelo, Lafaille quase enlouqueceu quando não conseguiu desenterrar os víveres nela armazenados. Dirigiu-se a uma barraca de uma equipe eslovena e pegou dois tubos de mel. “Tive medo de pegar mais, agora não sei porque”. Seguiu a pegada dos eslovenos e encontrou um sherpa que trazia água e comida.
Depois de algumas operações no braço, meses de descanso e terapia, Lafaille começou a escalar novamente. Em 1994, voltou a escalar bem em rocha e, em 1996, subiu o Shisha Pangma e fez uma travessia, em solitário, do Gasherbrum I e II em três dias. Em 2002, fez com o espanhol Alberto Iñurrategi, a primeira repetição da Aresta Leste do Annapurna, uma via com poucas possibilidades de êxito, por ser técnica, difícil, longa e de alto risco, pois é desprotegida dos ventos. No caminho de ida e volta acamparam três dias seguidos acima dos 7.000m. Lafaille também continua em atividade escalando nos Alpes, além de trabalhar como instrutor na escola de Guias de Chamonix, na França.
Obs.: No ano de 2006, após a publicação deste artigo na revista Fator2, Lafaille desapareceu durante uma tentativa invernal, em solitário, ao Makalu (8.463m), no Himalaia. Leia mais em www.desnivel.com
(*1) Picareta utilizada para cravar no gelo.
(*2) Tipo de scalada que mistura gelo e rocha.
(*3) Travas com pontas de metal usadas na bota.
(*4) Greta na base de uma parede de gelo.
Fonte: Desnivel de nov/1993 e Jun/2001 e Alpinismo Extremo, de Mark Twight e James Martin.