Manifesto da Escalada Natural
Quando em 9 de abril de 1912 cinco jovens de Teresópolis pisaram pela primeira vez o cume do Dedo de Deus, começava em nosso país a prática de um novo esporte já bastante popular em outras partes do mundo, o Montanhismo. Ganhando de imediato novos adeptos, o Montanhismo desenvolveu-se tendo como óbvio objetivo inicial a conquista de inúmeros picos ainda virgens no Rio de Janeiro e em seus arredores e, à medida em que estes escasseavam, a de novas vias de acesso a montanhas já escaladas anteriormente. O equipamento e as técnicas empregados por esses pioneiros eram evidentemente bastante primitivos, parte devido à própria época em que essas ascensões se deram, parte pela falta quase que absoluta de contato com outras regiões nas quais a escalada em rocha se encontrava mais desenvolvida.
O uso de troncos e escadas como auxílio direto na progressão do escalador era a regra, e a proteção inteiramente baseada em grampos, artefatos de segurança que, uma vez aplicados, marcam irreversivelmente a rocha. Cabos de aço eram considerados uma técnica refinada, e o expoente máximo no uso deste artifício foi o infatigável escalador Sílvio Joaquim Mendes, que ao longo da década de 40 produziu diversas escaladas, algumas notáveis, com este recurso. Não havia qualquer preocupação com estilo pois então, muito compreensivelmente, o importante era completar a escalada e atingir de qualquer maneira o cume visado. Os fins justificavam os meios. Pouco importava como a via era feita, já que escaladas eram encaradas como simples itinerários na rocha a serem vencidos com o auxílio de todos os recursos disponíveis.
Novas técnicas foram então criadas e introduzidas em nosso meio, e o equipamento à disposição do escalador foi de tal forma aperfeiçoado que muito cedo chegou-se ao ponto em que, literalmente, qualquer via poderia ser conquistada, mesmo por cordadas sem o menor preparo para tal, através de artificiais fixos. A habilidade cedia lugar à diligência, a criatividade à repetição, a coragem à tecnologia, e a vitória final sobre a escalada tornava-se, assim, um fato inevitável.
Além disso, muitas dessas conquistas eram coletivas, ou seja, aquelas nas quais o sentimento maior de descoberta e criação de uma nova via é substituído por um trabalho de grupo que, embora gratificante sob certos aspectos, reduz o escalador de condição de um verdadeiro artista para a de simples operário. Resulta daí que a montanha terá que ceder, necessariamente, diante de um assalto que conte com tantos esforços alocados de forma sistemática. Isso rouba da escalada em rocha o sabor de aventura e a incerteza do resultado, sensações próprias de ascensões executadas com meios limitados e que, certamente, são dois de seus maiores atrativos. A experiência única que é a abertura de um novo traçado por uma cordada pioneira cede lugar a um avançar repetitivo, quase monótono, com o uso maciço de recursos materiais e humanos visando apenas completar a via, e não extrair dela experiências enriquecedoras.
Para salvar o esporte, enquanto esporte, de uma estagnação total, impunha-se que a comunidade local de escaladores resolvesse, voluntariamente, limitar os meios empregados em conquistas e ascensões subseqüentes. Tal atitude era inclusive urgente, pois o Rio de Janeiro e seus arredores já haviam sido severamente castigados com milhares de grampos absolutamente desnecessários. Estes desfiguram por completo o caráter natural das paredes rochosas e constituem-se, em termos ecológicos, em uma forma de poluição estética tão indesejável quanto o lixo que por vezes vemos espalhado ao longo de trilhas, acampamentos e mesmo amontoado na base de certas escaladas.
De fato, ao longo do tempo foram surgindo escaladores para os quais subir simplesmente uma parede passou a representar muito pouco, e que viam escaladas não como um mero itinerário na rocha, mas como uma íntima união deste com o estilo empregado durante a sua conquista e mesmo em ascensões posteriores. Para eles, grampos eram apenas o último (e não o único) recurso a ser usado, e escaladas deveriam ser tentadas o mais em livre possível, ou seja, sem se utilizar dos artefatos de segurança para apoio e progressão, devolvendo-lhes o seu caráter original de proteção no caso de uma eventual queda. Se uma escalada lhes parecesse acima de suas capacidades, treinavam para fazê-la corretamente ou então desistiam da empreitada, respeitando os limites impostos pela montanha.
Um dos mais remotos e brilhantes exemplos dessa nova mentalidade foi a conquista da Face Leste do Dedo de Deus, em 1944 – e portanto em plena era do cabo de aço –, por três associados do Centro Excursionista Brasileiro, sem o uso de um grampo sequer. O CEB foi o pioneiro e desde então, até há poucos anos atrás, essa linda escalada pôde ser desfrutada em seu estado original por centenas, talvez milhares, de escaladores.
Exemplos como esse, de escaladas naturais, se multiplicaram ao longo dos anos, mas como a toda ação corresponde uma reação, logo se levantaram algumas vozes e críticas contra esse processo, que começava em nosso país já com considerável atraso em relação aos demais locais no mundo onde o esporte era praticado com seriedade. Essas críticas partiam de indivíduos ou grupos inconformados com o progresso e a evolução da escalada em rocha em nosso país, por razões para mim obscuras, mas eram a princípio discretas, já que não foi senão muito lentamente que o conceito de “escalada limpa” foi se estabelecendo em nosso meio e, portanto, não se constituía ainda em ameaça maior ao arcaico status quo vigente.
Ocorre que o número de adeptos do purismo em nosso esporte cresceu consideravelmente em número e habilidade, graças à natural evolução que acompanha o desenvolvimento de qualquer atividade, e sua capacidade técnica foi em muito ampliada devido à determinação de se explorar novos limites de dificuldade com uma auto-imposta redução de meios. Dentro desse espírito, notáveis conquistas foram realizadas; afinal, a escalada em livre pode ser comparada a uma dança de rara elegância executada em um cenário vertical, e certamente é uma das mais belas e gratificantes formas de expressão do corpo humano em movimento. Nela, cada parte do corpo, assim como os sentidos e as emoções, são convocados a cada instante a terem um desempenho preciso para que se possa vencer o obstáculo proposto. Além disso, se a competição em nível interpessoal e intergrupal é um elemento inteiramente estranho e condenável em nosso esporte, pode haver uma competição velada do escalador com ele mesmo, no sentido de estabelecer os seus próprios limites e, se possível, alargá-los.
Para isso, por vezes, é necessário um grande treino e dedicação, como de resto em qualquer outra atividade humana. Mas que mal há nisso? A esse respeito, seria interessante ouvirmos o parágrafo final do editorial da revista inglesa Mountain, em sua edição de janeiro/fevereiro deste ano (1983): “Não devemos nos preocupar quando os escaladores se tornam mais atléticos e usam sua própria força para conquistar a montanha, mas sim quando abusam no uso de artifícios para reduzir a montanha ao seu próprio nível. A reabertura aos olhos do mundo ao longo dos dez últimos anos da noção de escalada em livre pura pôde assegurar a continuidade da saúde do esporte”.
Aliás, o nivelamento por baixo do esporte parece ser o objetivo dos mais exaltados opositores de seu progresso nos dias atuais, gente que em plena década de 80 ainda conquista com cabos de aço, escadas de madeira, artificiais fixos inúteis, etc., e que altera profunda e irreversivelmente as características originais de ótimas vias criadas no passado e assim repetidas por anos – ou décadas –, freqüentemente sem comunicar o fato aos onquistadores. Estas pessoas acusam a nova geração e seus feitos como obra de acrobatas e elitistas. Acrobatas porque muitos escaladores de hoje sentem prazer em enfrentar obstáculos muito acima dos acanhados limites que a estreita visão daqueles permite enxergar. E elitistas porque, em sua determinação de desenvolvimento, encaram e tentam dominar os seus próprios medos, e porque têm a suprema coragem de admitir a derrota frente às dificuldades naturais, sem recorrer a marretadas como uma solução rápida e fácil para os problemas que se apresentem.
Diz-se também que não está havendo respeito pelas tradições do Montanhismo, e que as atividades dos escaladores de hoje são conflitantes com o espírito dos clubes, dos quais se estaria tentando, inclusive, subverter a ordem normal. Nada mais falso. Os clubes sempre foram o principal centro de prática e difusão do esporte em nosso país, e seu papel é insubstituível nesse aspecto. Aqueles que se modernizam nada têm a temer; pelo contrário, só têm a lucrar com a efervescência que a introdução de novas idéias, técnicas e equipamentos trazem. Além disso, tradições só fazem sentido quando não interferem com o progresso, pois se não ainda estaríamos escalando com cordas de sisal na cintura e botas cardadas, e ainda seriam exigidos ao novato dois anos de experiência comprovada para participar de uma simples ascensão à Agulha do Diabo.
Os clubes devem ser fortalecidos, desde que não se desviem de sua finalidade original: ponto de encontro de montanhistas, centro de divulgação e estímulo à prática do esporte e arquivo da memória excursionista. Quando um clube passa a dar maior importância à sua vida social do que ao Montanhismo em si incorre em grave distorção, que fere o próprio ideal que motivou a sua criação.
Finalmente, a última crítica que pesa sobre os defensores das escaladas naturais a merecer consideração é a que diz respeito às vias por eles criadas, que seriam perigosas, inseguras, e que se estaria tentando torná-las propositalmente difíceis e inacessíveis ao escalador comum. Nota-se aí, novamente, o conceito de elitismo sendo usado como arma improvisada para suprir a falta de argumentos mais consistentes sobre o assunto, e para disfarçar sentimentos inconfessáveis.
Um exemplo concreto de que qualidade não é sinônimo de dificuldade novamente pôde nos ser dado por associados do CEB, ao conquistarem recentemente duas pequenas e fáceis escaladas de 2º grau no Rio de Janeiro, os Paredões São Pedro e Yosemite. Ambas são vias que, apesar de clássicas em sua concepão, foram conquistadas dentro de um estilo impecável, ou seja, inteiramente em livre e com grampos em número suficiente para torná-las seguras, e nada mais.
É evidente que sempre poderá haver alguma discordância quanto ao tamanho de alguns lances, mas tais discussões devem ser levadas a termo civilizadamente sob o signo do bom senso, e há de se respeitar, em última instância, a concepção original dos conquistadores. De qualquer forma, a questão poderia ser resumida nas palavras de um alpinista austríaco (Reinhold Messner), comentando a respeito dos que insistem em reduzir a dificuldade da montanha por meio de artifícios: “Esses escaladores carregam a sua coragem na mochila”.
Quanto à proteção móvel – ou natural, já que não danifica a rocha –, tal como nuts, friends, bicos de pedra, afirmo que ela é absolutamente segura quando corretamente empregada, e seu uso é a regra, e não a exceção, em todo o mundo. Há quem diga que nuts não deveriam ser usados, pois nem todos sabem lidar com eles ou mesmo não os possuem. Ora, qualquer técnica só pode ser posta em prática se houver um aprendizado prévio, e o uso de nuts, como qualquer outra em escalada, deve ter o seu ensino difundido para todos. Bater grampos ao lado de boas fendas, visando torná-las acessíveis para todos, seria como se o Comitê Organizador das Corridas de Fórmula I franqueasse suas provas a carros de passeio, para que todos nelas pudessem tomar parte. As únicas diferenças correm por conta da natureza competitiva daquele esporte, estranha ao Montanhismo, e pelo fato de que qualquer um com vontade e disposição reais pode repetir as vias em nuts.
E quanto à alegação de que poucos possuem jogos de nuts, esta é improcedente, pois já vai longe o tempo em que estes eram uma raridade, e atualmente já existem até alguns de fabricação nacional, e todos sabemos como obtê-los.
Para concluir, gostaria de lembrar a todos os montanhistas presentes, mas especialmente aos mais novos que, no momento atual, estamos diante de uma encruzilhada que decidirá qual o futuro do nosso esporte. Está em jogo o nosso maior patrimônio, ou seja, o conjunto de paredes rochosas que nos circundam, e que serão legadas àqueles que nos sucederem. Cabe então a cada um, com base nesses fatos que saltam aos olhos de quem quiser vê-los, escolher o seu caminho. Pode ser o caminho fácil que conduz ao passado, o da despreocupação com estilo e com a integridade física e estética da rocha, onde qualquer dificuldade pode ser imediatamente substituída por um grampo; ou pode ser o caminho muito mais árduo e exigente da escalada natural, onde dedicação – por vezes obstinação – e firmeza de propósitos são requisitos indispensáveis. Um caminho onde insucessos são mais freqüentes, mas que por outro lado, e por este mesmo motivo, as recompensas interiores de uma vitória são incomparavelmente maiores, já que derivam de um encontro justo com a montanha.
Se esse rumo for o escolhido por todos, então poderemos afirmar com segurança que a escalada em rocha no Brasil irá ocupar, em breve, o lugar de destaque que merece, tanto dentro quanto fora de nossas fronteiras.
Texto distribuído por André Ilha juntamente com o “Manifesto da Escalada Natural”, de setembro de 1983, em sua versão impressa.